A importância de Piaget no ensino de geografia

As questões envolvem o como, para quê e para quem ensinar geografia escolar e, por isso, a aprendizagem e a didática da geografia, na perspectiva da epistemologia genética de Piaget, serão relacionadas com o processo de aprendizagem (em geografia).
Para Piaget, a aquisição do conhecimento deve ser compreendida como um processo de autoconstrução contínua; a gênese do conhecimento é explicada através da função adaptativa dos sujeitos em sua interação com o meio. Esse processo ocorre por meio dos esquemas: são assimilados novos aspectos da realidade e,
em caso de dificuldade de ajuste, ocorre o desequilíbrio necessário que suscita a modificação de esquemas, até que se chegue à sua acomodação (Hernandez).
A assimilação e a acomodação constituem dois pólos de equilíbrio do pensamento da criança. A representação (imitação, jogos, desenhos), por exemplo, é um jogo de assimilações e acomodações que ocupa toda a primeira infância, principalmente no momento em que o aluno está estabelecendo comparações
entre o imaginário e o real, e aparece de maneira mais significativa na linguagem verbal e nos desenhos. Nestes últimos, o que o aluno desenha é o significante; o significado é o que ele pensa.
Essa relação entre significante e significado é importante para a geografia uma vez que auxilia no entendimento da legenda, quando o aluno deve decodificar os signos utilizados em um mapa cognitivo.
O construtivismo epistemológico preocupa-se com o que conhecemos e como alcançamos esses conhecimentos. Na epistemologia genética estudam-se os mecanismos e processos que os sujeitos atravessam na passagem dos estados de menor conhecimento aos estados de maior conhecimento (Piaget),
avaliando-se esses sujeitos pelo grau de conhecimento científico adquirido e compreendido, e não pela quantidade de informações conteudísticas sem significado que possam acumular.
A aprendizagem é vista como um processo de interação social que gera uma adaptação das estruturas mentais do sujeito, ou seja, é um processo de tomada de consciência, pelo educando, das propriedades dos objetos e das suas próprias ações ou conhecimentos aplicados aos objetos. Desse modo, a passagem de um nível de conhecimento a outro se realiza por meio da interação de fatores internos e externos, mais concretamente da experiência física e lógico-matemática, o meio e a interação social, as experiências afetivas e, sobretudo, a tendência à equilibração (equilíbrio-conflito-novo equilíbrio).
Uma vez que ocorre o desenvolvimento cognitivo, se estabelece uma sequência de estágios e subestágios vinculados, cujo traço principal é a integração de ações e conceitos em um processo de estruturação que se entende como sendo a construção de um sistema de ações e conceitos a partir de ações anteriores,
sem sistemas prévios. A psicologia genética considera que há um processo interativo entre sujeito e objeto, por meio do qual ocorrerá a construção do conhecimento.
É certo que a criança se encontra com objetos em seu ambiente físico e com noções transmitidas em seu meio social, porém ela não os adota tal e qual, mas os transforma e os assimila às suas estruturas mentais (Piaget). Assim, os conceitos centrais da teoria psicogenética permitem apreciar a magnitude de sua potencialidade para entendermos como ocorre o processo de aprendizagem.
Trazer a psicogenética para o cotidiano da sala de aula sempre foi um desafio, até porque não era essa a preocupação de Piaget e seu grupo. Entretanto não podemos deixar de assinalar que algumas ideias iniciais da teoria piagetiana têm sido revistas e reformuladas. No entanto, em relação às implicações educativas dos conceitos da teoria de Piaget, cabe destacar que as investigações psicopedagógicas compõem-se de estudos baseados no ensino e aprendizagem e constituem propostas de ação direta na educação.
Nessa perspectiva, a psicologia genética contribui na fundamentação da educação geográfica desde a educação infantil, em função das noções que estruturam a linguagem cartográfica, a qual se entende constituir os primeiros passos para se compreenderem conceitos geográficos. Entre as discussões apresentadas por Piaget, destaco uma que entendo ser de grande importância para o ensino de geografia, a dos esquemas de ação, ou seja, está relacionada com as estruturas mentais e, portanto, com a construção do conhecimento. Para Piaget, o conhecer não consiste em copiar o real, mas agir sobre ele e transformá-lo, de maneira a compreendê-lo em função dos sistemas de transformações aos quais estão ligadas estas ações» e ainda afirma que «para conhecer os fenômenos, o físico não se limita a descrevê-los tal como aparecem, mas atua sobre os acontecimentos, de modo a dissociar os fatores, a fazê-los variar e a assimilá-los a sistemas de transformações lógico-matemáticas.
A epistemologia genética é importante porque nos revela que, para compreender algumas noções que estruturam o conhecimento geográfico, como, por exemplo, o conceito de lugar, é necessário que a criança desenhe o seu lugar de vivência (rua, escola, moradia e outros não tão próximos); mas, para agir sobre ele e transformá-lo, as atividades devem motivá-la a pensar sobre as noções e conceitos, relacionando o senso comum (vivência) com o conhecimento científico. No entanto, para que a criança se aproprie desses conceitos, é importante que desenvolva o raciocínio, a partir da representação simbólica, das relações espaciais, da reversibilidade, e, ao mesmo tempo, se aproprie de noções cartográficas, como legenda, orientação, proporção, ponto de referência, entre outras.
Assim a criança vivenciará o processo de letramento cartográfico, uma vez que, além de compreender as noções, fará leituras e elaborará mapas mentais, experimentando atividades simbólicas como, por exemplo, compreender o significado dos símbolos e signos que corresponderão aos fenômenos que serão representados nos desenhos e que estarão relacionados e agrupados para que possa ser organizada uma legenda.
Desse modo, a geografia escolar estaria se utilizando da linguagem cartográfica como metodologia para a construção do conhecimento geográfico, trabalhando fundamentos como: dominar as noções de conservação de quantidade, volume e peso, superar o realismo nominal e compreender as relações espaciais topológicas,
projetivas e euclidianas, para estruturar esquema de ação. Essas noções auxiliam na construção progressiva das relações espaciais, tanto no plano perceptivo quanto no plano representativo – à medida que as crianças evoluem conceitualmente, vão adquirindo a linguagem e a representação figurada, isto é, segundo Piaget, a função simbólica em geral.
O pensamento simbólico representacional acontecerá passo a passo quando, por exemplo, a criança, colocada em situações de aprendizagem, mediadas pelo professor, compreender a função dos símbolos e dos signos criados socialmente, como a linguagem de um modo geral ou, no caso da geografia, a linguagem dos mapas.
A cartografia escolar tem esse papel, quando se trabalha com as formas geométricas, as cores e outros signos, criando-se condições para a identificação de símbolos que representam fenômenos geográficos e a organização de legenda.
A cartografia, então, é considerada uma linguagem, um sistema-código de comunicação imprescindível em todas as esferas da aprendizagem em geografia, articulando fatos, conceitos e sistemas conceituais que permitem ler e escrever as características do território. Nesse contexto, ela é uma opção metodológica, o que implica utilizá-la em todos os conteúdos da geografia, para identificar e conhecer não apenas a localização dos países, mas entender as relações entre eles, compreender os conflitos e a ocupação do espaço.
Nessa perspectiva, a dimensão cognitiva está no momento da representação de um trajeto (mapa cognitivo ou mental) ou da leitura de um mapa temático, pois são ações que possibilitam à criança relacionar a leitura de mundo e o desenho (mapa cognitivo) com os conceitos de área, tamanho, distância, organizando o pensamento na construção dos conceitos de escala e proporção.
Para a elaboração desses mapas, a criança se utiliza da noção de proporção – podendo ser os passos uma referência de medida – com o objetivo de encontrar um determinado objeto ou mensagem. Faz parte da elaboração dos mapas representar os objetos, fenômenos e lugares por meio de signos ou símbolos, e, para fazê-lo, é preciso escolher e hierarquizar o que será representado, de modo que a criança terá de selecionar, agrupar e classificar os símbolos que farão parte da legenda. No momento em que a criança desenha os lugares de vivência, o espaço perceptivo se estrutura sucessivamente, passando das relações espaciais topológicas às projetivas e euclidianas.
Tal construção inicia-se no período sensório-motor e a criança desenvolve ações que motivam a evolução dessas noções espaciais ao se deslocar; essa percepção vai evoluindo à medida que a criança se descentraliza espacialmente, ampliando as suas referências (corpo, diferentes pontos de referência, Sol). A evolução conceitual das relações espaciais topológicas ocorrerá simultaneamente com as projetivas e euclidianas, porque será desenvolvida a noção de proximidade e afastamento (perto e longe), dentro e fora, área, tamanho, parte e todo.
Já as relações espaciais euclidianas compreendem a noção de distância, área e equivalência entre as figuras, e relacionam-se também com a equivalência entre o real e a representação – desenvolver esse pensamento auxilia no entendimento das noções de escala e proporção e de igualdade matemática. Quando se trabalha com escala geográfica não se deve tratá-la apenas como uma questão técnica. Ao se desenvolver esse conceito, além da geometria, deve-se considerar a sua compreensão etimológica e sua importância na elaboração do discurso geográfico. A escala é uma proporção entre o real e o mapa, ou seja, entre a longitude do real e a longitude do mapa, o que significa que estabelece uma relação de equivalência (matemática), e por isso as crianças têm dificuldade em entendê-la, assim se torna importante desenvolver estruturas mentais que auxiliem na sua compreensão.
Quanto à escala, não se avalia apenas a relação de tamanho entre o desenho e a realidade, verifica-se nos desenhos a continuidade ou descontinuidade da área representada: a separação dos lugares, por exemplo, indica que estão isolados, embora façam parte de um conjunto, dando a impressão de que a criança está na fase da incapacidade sintética quanto às relações topológicas.
Essas formas de representar os lugares se materializam quando a criança é solicitada a fazer a planta da escola, o trajeto e a planta da casa – nessa produção a separação é nítida, faltando à criança capacidade para sistematizar o lugar vivenciado, como se, na sua memória, esses lugares aparecessem fragmentados, apesar de, em sua imagem perceptiva, haver uma visão de continuidade espacial.
Para que a criança inicie seu processo de construção do conceito de escala, é necessário que seja estimulada a perceber, no espaço vivido, as relações topológicas elementares, como separação, ordem e sucessão, proximidade e continuidade das linhas e superfícies. Nesse processo, tanto os aspectos cognitivos como a aprendizagem desempenham um papel importante.
Pela comparação que a criança faz entre objetos ou pessoas do mesmo tamanho e de tamanhos diferentes, e tendo que utilizar a memória na representação do trajeto ou nas plantas – situações em que existe uma relação entre espaço físico e imagem – pode-se perceber se ela possui noção de proporcionalidade, assim como de continuidade, área e linha. À medida que a criança observa e registra os lugares de vivência de situações concretas ou não, mesmo que utilizando a memória para isso, ela pode ser colocada em situações que a levem a atingir níveis cada vez mais elaborados dessas noções, como proporção e área, além das habilidades operatórias de comparar tamanhos e áreas diferentes, quantificar os fenômenos, classificá-los e hierarquizá-los – situações que contribuirão para a construção do conceito de escala.
Cabe acrescentar que é só por volta de 8-9 anos de idade que a noção de proporcionalidade vai se constituir e que, paralelamente à noção de proporção, se estrutura a de largura e comprimento, implicando noção de medida, que tem relação com o espaço euclidiano. Mas podem ocorrer casos em que, por volta dos 10 anos, a criança ainda possa apresentar dificuldades nesses conceitos – as idades indicadas para o desenvolvimento de certas capacidades não são normativas, já que esse desenvolvimento depende do nível de estimulação cognitiva a que a criança é exposta.
O olhar geográfico da criança pode ser estimulado ao comparar diferentes espaços e escalas de análises, o que possibilita superar a falsa dicotomia existente entre o local e o global, dicotomia produzida pela ordenação concêntrica dos conteúdos geográficos, e que acaba gerando um discurso descritivo do espaço geográfico. Nesse caso, destaca-se a importância de se estabelecerem relações entre essas escalas, criando condições para que a criança ordene os espaços estudados e compare os fenômenos geográficos, ampliando
assim a ideia de escala. Alguns autores, como Batllori, chamam a atenção sobre a importância de se eleger uma escala de análise e em seguida outra, para que a criança consiga explicar o processo de generalização dos elementos e fenômenos de uma área, já que, em função da escala, pode-se perder a noção de conjunto ou de detalhes do que está se estudando.
A interpretação dos fenômenos geográficos ganha significado quando a criança entende a diversidade da maneira como se dá
a organização dos lugares, quando compreende o conceito de
território, por isso reafirma-se que a leitura de mapas e a elaboração de mapas cognitivos são imprescindíveis para a compreensão do discurso geográfico.
A verticalidade e a horizontalidade estão ligados ao ponto de vista, à maneira como a criança observa a posição dos objetos e como consegue representá-los. Ao observar um objeto, a criança o lê numa posição vertical e com visão tridimensional, sendo que ele está em uma posição no espaço; ao desenhá-lo, passa a vê-lo horizontalmente e de forma bidimensional, e a posição do objeto, algumas vezes, é invertida. A construção desse conceito passa por atores perceptivos que variam de acordo com a idade e com o indivíduo. Essas relações requerem um conjunto de habilidades e estruturas mentais como a reversibilidade e a descentração, pois dependem do ponto de vista do observador. Segundo Piaget & Inhelde, (...) correlativamente à construção desse sistema de pontos de vista, constitui-se igualmente uma coordenação dos objetos como tal, conduzindo ao espaço euclidiano, à construção das paralelas, dos ângulos e das proporções ou semelhanças que fazem a transição entre os dois sistemas. Essa coordenação dos objetos, que supõe a conservação das distâncias, bem como a elaboração da noção de deslocamento, acaba na construção dos sistemas de referências ou de coordenadas.
Apresentamos como um conceito a visão vertical, horizontal e oblíqua a partir da qual a criança vê ou percebe o objeto. Ao determinar a imagem que será desenhada, necessariamente a verticalidade e a horizontalidade organizam o sistema de coordenadas, sendo, pois, fundamentais para a localização dos objetos e lugares no espaço. Para que haja compreensão espacial desse conceito, a criança deve ter desenvolvidas as relações projetivas e euclidianas, sendo que a dificuldade está, muitas vezes, na falta de abstração das formas do objeto.
Tanto a horizontalidade como a verticalidade, entre os 7-8 anos, já começam a se estruturar, mas é por volta dos 9 anos que, hipoteticamente, a criança inicia o processo de construção do sistema de coordenadas, que consiste em relacionar ordenadamente três dimensões ao mesmo tempo: esquerda e direita; acima e abaixo; frente e atrás. Dessa maneira, a criança perceberá o espaço e conseguirá representá-lo, mas para isso é preciso que essas noções sejam garantidas nas atividades de aprendizagem desenvolvidas em sala de aula. Ao buscar essa atitude, o professor tomará as noções cartográficas como referência para estruturar o conhecimento geográfico, o que significará ter como referência teórica alguns pressupostos piagetianos, principalmente no que se refere à construção do real e do espaço na criança.
Todo esse processo relacionado à construção do conhecimento permitirá que as crianças desenvolvam o raciocínio estratégico, como afirmou Lacoste. Ao estimular as crianças com atividades que desenvolvem uma evolução conceitual, elas poderão ler e elaborar mapas cognitivos num primeiro momento para, em seguida, ler uma representação cartográfica, compreendendo as convenções internacionais.
A educação geográfica: pensar a didática Pensar pedagogicamente os saberes geográficos numa perspectiva metodológica e significativa para os alunos implica desenvolver ações que reestruturem os conteúdos, inovem os procedimentos e estabeleçam com clareza os objetivos. Desse modo, considera-se que a prática educativa da construção de conceitos, atitudes e procedimentos, socialmente, no grupo familiar ou na escola, se faz considerando o conhecimento prévio do aluno, participando do processo de aprendizagem ao possibilitar conflitos cognitivos durante o trabalho dos alunos com o material escolar e mesmo fornecer informações com o propósito de suscitar a reorganização das ideias prévias das crianças na direção do saber
a ser ensinado. (...) É preciso enfatizar os processos formadores das hipóteses e os sistemas conceituais vinculados ao ‘saber a ser ensinado’, sem renunciar ao pensamento lógico como uma condição necessária para aquela aquisição.
Castorina corrobora com essa ideia ao afirmar que é necessário realizar indagações que mostrem efetivamente o desenvolvimento dos mecanismos universais de apropriação, no interior daquela interação com os saberes escolares, e o avanço na reconstrução psicogenética das ideias prévias que correspondem aos conteúdos curriculares em diferentes domínios. Quando o professor define seus objetivos, estrutura os
conteúdos, conceitos e conhece os seus alunos, fica mais fácil perceber e criar condições para que ocorra de fato uma aprendizagem significativa. Desse modo, consideramos que a aula tem uma função relevante, pois é o momento no qual se pode organizar o conhecimento e o pensamento do aluno, a partir de atividade de aprendizagem. Contudo nem todas as ações docentes garantem uma aprendizagem suficientemente construtivista para todos, mesmo não esquecendo que cada aluno tem seu processo interior, o qual pode ser estimulado quando mediado pelo professor e por seus pares.
Na discussão sobre o construtivismo epistemológico e o conhecimento cotidiano ainda há muitos equívocos, e o mais comum deles é quando, na prática docente, se considera o cotidiano ou as experiências dos alunos apenas como referência inicial da aula, sendo em seguida colocados de lado ou esquecidos, à medida que o professor retoma os conteúdos/informações sem fazer nenhuma referência a essas experiências – atitude que acaba desmotivando o aluno para a aprendizagem.
Os mapas e as imagens presentes nas aulas são procedimentos, ou seja, estratégias de aprendizagem que possibilitam aos alunos trazer para a discussão o conhecimento prévio e ao mesmo tempo mobilizam habilidades mentais (classificar, analisar, relacionar, sintetizar...) e estimulam a percepção, bem como a observação e a comparação das influências culturais existentes nos diferentes lugares. Permitem ainda que os alunos entendam os mapas como construções sociais que transmitem ideias e conceitos sobre o mundo, apesar da pretendida neutralidade e objetividade que o smeios técnicos utilizam para confeccioná-los.
O construtivismo não é a explicação para tudo o que ocorre no mundo e na escola, mas é uma perspectiva epistemológica a partir da qual tenta-se explicar o desenvolvimento humano, e nos ajuda a compreender os processos de aprendizagem, assim como as práticas sociais formais e informais que a facilitam (Juque, Ortega & Cubero).
O mais difícil da prática docente é provocar a dialética entre o conhecimento cotidiano e o conhecimento acadêmico, potencializando-se assim novos conhecimentos, em um processo no qual os objetivos conjuguem conceitos, esquemas e experiências para garantir uma aprendizagem sólida e significativa, sem diminuir ou aligeirar conteúdos. Por isso pensar uma Educação Geográfica significa superar as aprendizagens repetitivas e arbitrárias e passar a adotar práticas de ensino que invistam nas habilidades: análises, interpretações e aplicações em situações práticas; trabalhar a cartografia como metodologia para a construção do conhecimento geográfico, a partir da linguagem cartográfica; analisar os fenômenos em diferentes escalas; compreender a dimensão ambiental, política e socioeconômica dos territórios Ao assumir a teoria construtivista em todas as suas implicações, muda-se a concepção que se tem do papel da escola e da função do professor, pois ela exige que se modifiquem os preconceitos, por exemplo, com relação ao potencial dos alunos para conduzir e construir conhecimentos, ao papel da aprendizagem cooperativa dos outros alunos e ao papel do professor e o seu caráter de mediador. A ação docente está, portanto, relacionada com os objetivos pedagógicos e educacionais que estabelecemos para desenvolvermos os conteúdos em sala de aula. Se tivermos uma prática que contribua para a evolução conceitual do aluno, atuaremos na perspectiva da construção do conhecimento, refletindo sobre a realidade vivida pelo aluno, respeitando a sua história de vida e contribuindo para que ele entenda o seu papel na sociedade: o de cidadão.
Essa reflexão nos conduz na direção da articulação entre o conteúdo específico e a metodologia do ensino de geografia, revelando que a concepção que temos de geografia deve estar relacionada com a concepção pedagógica. Assim, o processo de aprendizagem torna-se um desafio permanente para o professor, que deve ter a preocupação de contribuir para desenvolver a capacidade, nele próprio e no aluno, de pensar, refletir, criticar, criar etc. E não deveria ser esse sempre o papel do professor? Caso contrário, tanto ele quanto o aluno serão seres de existência passiva na sociedade. No processo de aprendizagem, a ênfase tem sido dada ao conteúdo e aos resultados da avaliação, e não em como criar condições para a aprendizagem. Para um processo de aprendizagem fundamentado no construtivismo epistemológico saber e compreender são duas coisas diferentes: o ato simples do saber não considera o aluno como sujeito da sua aprendizagem, além disso, compreender é diferente de relacionar ou elaborar. Partes e do pressuposto de que tanto a didática quanto a metodologia do ensino, ou seja, o saber-fazer ou o como o conteúdo é desenvolvido, como o aluno adquire o seu conhecimento e como ele chega a construir os conceitos científicos – são soluções para essas questões. Entendemos que os contextos escolares são diferentes no que e refere à dimensão étnica e cultural, mas as preocupações com os saberes escolares são comuns. Nesse sentido, duas questões retratam os desafios que são colocados na escola: como auxiliar os alunos a conhecer o mundo em que vivemos? O que podemos ensinar do conhecimento geográfico?

A dimensão pedagógica em que acreditamos para realizar um trabalho escolar significativo visa uma prática educativa fundamentada numa teoria que possa inovar na metodologia do ensino e no currículo escolar. Mas fica ainda uma outra questão:
“como o sujeito que aprende constrói seu conhecimento?”.
Entendemos que a geografia escolar vai além da descrição e da informação, aspectos que ainda muitos professores querem reforçar nas escolas. As atividades educacionais e pedagógicas que realizamos no dia-a-dia da escola deveriam ser enquadradas numa concepção de construção do conhecimento.
Por fim, definimos o ensino de geografia como um conjunto de saberes que não só ocupam os conceitos próprios, mas os contextos sociais nos quais se apóiam. Ensinar na perspectiva da construção dos saberes não é apenas dominar conteúdos, mas ter, ao mesmo tempo, um discurso conceitual organizado com uma proposta adequada de atividades, buscando superar os obstáculos da aprendizagem.
Nesse contexto de pressupostos, a escola é o lugar de desenvolvimento do potencial crítico e criativo dos sujeitos-alunos, na medida em que lhes possibilite exercitar a dúvida, a indagação, o questionamento constante na compreensão da realidade, para melhores condições de vida no planeta; o aprendizado escolar é vital, pois, para a leitura consciente do mundo em que se vive, local e globalmente. Paulo Freire, já nos anos de 1970, focalizava a importância de uma consciência transformadora da realidade: O desenvolvimento de uma consciência crítica que permite ao homem transformar a realidade se faz cada vez mais urgente. Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora.
Nesse sentido, a escola é lugar-força, espaço-tempo em que os sujeitos podem ser projeto e projetar a vida, a sociedade, o mundo. Na escola-projeto há um projeto de sociedade e, este, é parte do projeto da Geografia escolar: está em questão um projeto mundo, de sociedade, de cidadania, pois “a Geografia pressupõe um projeto do/sobre o homem (...)” (DAMIANI), incluindo não só um pensamento, mas um pensamento-ação; e, nesse sentido, a Geografia tem a função de desvendar os significados sócioespaciais, em vista da formação da consciência espacial-cidadã. Para efeito de explicitação, o sentido do termo consciência, aqui, relaciona-se à construção dialeticamente estruturada da sociedade (MARX; ENGELS), emergindo entre os homens no entrelaçamento das relações de trabalho e de produção, de tensões e conflitos, enfim, das situações e modos de vida na realidade concreta.
Não é uma consciência sem contexto, sem chão; mas nasce, constrói-se, forma-se a partir do modo de vida do homem. Na sua condição existencial de ser consciente, o homem é sujeito histórico, que vive o processo de construção da sua identidade, do seu sentir, pensar, saber e agir. Nesse processo de formação da consciência, ou de um homem que pensa sua concretude no contexto da realidade histórico-sócio-cultural do mundo, o sentido de cidadania participativa, democrática, atuante, unifica os processos da vida real e incorpora experiências, sentidos, significados e representações – inclusive, reflexos ideológicos e ecos desse processo de vida, na vida (FREIRE). Esta visão é crucial, dado o risco da escola prestar-se sociopoliticamente a condicionar deformações da consciência – mentalidades alienadas, preconceituosas, extremistas e exclusivistas – na linha dos interesses de grupos e classes dominantes. Por isso, consciência não
é inculcação de determinada representação da sociedade, presente em discursos e práticas sociais manipuladoras – mas posição reflexivo-problematizadora das representações socioculturais,
em toda sua extensão. Assim, a consciência espacial-cidadã é processo de formação ativa para um cidadão ativo, não o resultado de processo natural, evolutivo; é processo desencadeado pela vida, por condições e modos de viver, por práticas sociais engajadas e eticamente referenciadas.
No contexto da problematização posta, a educação geográfica apoiará os sujeitos-alunos a formarem uma consciência da espacialidade dos fenômenos vivenciados como parte da sua história sócio-cultural: consciência da possibilidade de intervenção no mundo, do agenciamento da condição de sujeitos nesse mundo.
Assim, os atos de ler o mundo, indagar-se sobre ele, questioná-lo, explicá-lo, implicam – ao educador – entender a educação geográfica como processo que entende o sujeito-aluno enquanto agenciador, alguém que, ao ler o mundo, projeta um mundo; e a Geografia escolar assume capital relevância na formação da consciência espacial-cidadã, objetivando a: Aumentar o conhecimento e a compreensão dos espaços nos contextos locais, regionais, nacionais, internacionais e mundiais e, em particular:  conhecimento do espaço territorial; compreensão dos traços característicos que dão a um lugar a sua identidade; compreensão das semelhanças e diferenças entre os lugares; compreensão das relações entre diferentes temas e problemas de localizações particulares; compreensão dos domínios que caracterizam o meio físico e a maneira como os lugares foram sendo organizados socialmente; compreensão da utilização e do mau uso dos recursos naturais (CASTELLAR).
Entre tantas temáticas sócio-pedagógicas, em seus contextos locais e globais, a cidadania crítico-participativa é de urgência nuclear, pois releva a intervenção dos sujeitos-cidadãos no contexto global a partir de ações locais – na linha da solidariedade e convivência, do respeito entre povos e diferentes etnias; questionando terrorismos e a degradação socioambiental, focando sociedade e natureza em suas múltiplas interdependências. Para tal cidadania constituir-se socialmente, mais que necessidade formativa na escola, deverá ser uma experiência sócio-individual vivenciada na e com a escola.

A década 1980-90 trouxe notáveis mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais, ao mundo e ao Brasil, determinadas pela ideologia neoliberal e voltadas à globalização econômica, por sua vez, relacionada ao desenvolvimento científico tecnológico – influenciando a forma de se pensar e organizar a realidade global
e local (SANTOS). Esse foco implica uma leitura do mundo e das ações do homem sob o ponto de vista sistêmico, considerando-se as relações entre os sistemas econômico produtivos e as estruturas sociais que se re-organizam em dinâmica constante, criando e  recriando novas formas geográficas, de acordo com cada dinâmica espaço-temporal. Santos, destaca três aspectos no entendimento da mundialização: o mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade. No primeiro, o mito do encurtamento de distâncias, a partir da fábula da “aldeia global”, faz crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas, encurtando tempo e espaço, pois é “como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão”; nessa lógica, Santos ressalta que um “mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de
homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas”. Fome, pobreza, miséria, falta de recursos na educação, baixos salários, decadência material e física dos espaços de aula, entre outros aspectos, estão no fosso que aumenta com esse processo. Nas palavras de Santos, o “desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes”. A perversidade do modelo sócio-econômico – o segundo aspecto – entra em cena: com isso, “[...] o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado”. Ainda que esta realidade pareça insuperável, Santos destaca a ideia de mundo como possibilidade – o terceiro aspecto – no sentido de “[...] pensar na construção de um outro mundo, mediante uma globalização mais humana”.
Para tanto, salienta que as “[...] bases materiais do período atual, são entre outras, a unicidade da técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta”. Diante dessas questões, o ensino e a aprendizagem de Geografia, no século XXI, exigem novas posições do professor e do aluno ante o conhecimento e os processos de ensinar e aprender. É fundamental que as práticas de ensino e aprendizagem possibilitem ao sujeito-aluno apreender que é sujeito histórico, construtor de uma história singular – sua história; e de uma história heterogênea, a sócio-história (VESENTINI).
Nessa linha, o espaço geográfico é espaço construído social, cultural e historicamente; não é estático, mas dinâmico  (SUERTEGARAY), tem mobilidade pelos sujeitos que nele vivem e interferem, por ações e atitudes. Esse espaço-movimento é complexo, resultando das forças que nele atuam e o caracterizam como construído – comportando outras possibilidades de se olhá-lo,  percebê-lo e de nele intervir.
No sentido do pensamento complexo, cunhado por Morin e pesquisadores que tratam essa concepção na Geografia (SILVA; GALEANO, CAMARGO), o espaço passa a ser entendido como tessitura, lugar que abarca o certo e o incerto, a ordem e a desordem, nele se reconhecendo o singular, o individual, o concreto, o local e o global. Historicamente situado, contextualmente localizado e complexamente percebido em sua fluidez, o espaço passa a ser vital; adquire significado de espaço vivido, da experimentação, da possibilidade; é visto e entendido como espaço do existir com. É o lugar do pertencimento, das singularidades, das subjetividades; da reinvenção, a partir do modo de viver dos sujeitos que organizam e pensam os seus espaços-lugares.
É o lugar da relação do sujeito consigo mesmo, onde pode criar formas de relacionar-se, de vivenciar sua subjetivação e identificação. Segundo Santos, o lugar “[...] é, antes de tudo, uma porção da face da terra identificada por um nome. Aquilo que torna o ‘lugar’ específico é um objeto material ou um corpo. Uma análise simples mostra que um ‘lugar’ é também um grupo de ‘objetos materiais’[...]”. Cada lugar tem uma identidade que permite ao sujeito apropriá-lo como o seu espaço habitado, de pertencimento.
O espaço geográfico, reinventado, vem a ser entendido como casa-morada do sujeito situado – aquele que vê, sente, percebe, confronta, desestrutura, provoca, afeta o lugar onde vive. Não é apenas espaço da existência material, das relações de trabalho; é espaço-lugar da convivência, da estética e da ética. O espaço
geográfico, então, toma outras formas: faz-se espaço singular com o sujeito singular, espaço do desejo, da vontade, dos sonhos, da arte, da criatividade, da inconstância, do sincrônico e do diacrônico.
O espaço torna-se objeto de estudo não só pela forma ou pelas coisas que nele são produzidas, mas pelos modos de vida que o produzem – pelos projetos dos sujeitos no espaço. Não é um espaço receptáculo (SANTOS), mas um espaço-projeto. Para Cavalcanti,“O espaço geográfico não é apenas uma categoria teórica que serve para pensar e analisar cientificamente a realidade; ele é essa categoria justamente porque é algo vivido por nós e resultante de nossas ações”. “Um projeto de ensino de Geografia, [...] tem o compromisso de efetivar as reais possibilidades de ela contribuir para a formação dos cidadãos voltados para uma vida participativa em seu espaço, em sua cidade”. Mais que trabalhar conhecimentos conceituais e procedimentais nas diferentes modalidades de ensino, em especial na educação fundamental, é fundamental que se trabalhe com a formação de atitudes (ZABALA). A educação geográfica, que se busca, é comprometida com a formação da cidadania responsável com a sustentabilidade do mundo, que implica uma intervenção ética - criteriosa e prudente - do sujeito situado no universo político, econômico, social, cultural e natural (CARNEIRO).
Nessa conexão, Jonas, já no final da década de 1970, propunha o princípio da responsabilidade, como base a uma ética para a civilização tecnológica – discutindo em perspectiva de futuro o imperativo da sobrevivência da humanidade: recusa à inevitabilidade histórica dos dinamismos socioeconômico e tecnológico, no sentido do progresso contínuo, necessário ou natural; e abertura à exigência de cuidado como dever para com o ser do outro, cabendo sanar e melhorar as condições de vida, em perspectiva de compromisso ao futuro dos homens. Forrester também chama a atenção para a “ditadura” da economia neoliberal, uma pseudo-economia que, segundo a autora, parece não ter nada de irreversível; nessa visão de mundo, o que importa é o lucro e a competição acirrada. Tempo e espaço são utilitários do modo de ser e viver do economicismo. A lógica das formas e condições de vida, como as práticas sociais, estão submetidas a um pensamento redutor que traz graves consequências à humanidade, com sequelas irredutíveis.
Nesse contexto, a escola e suas diferentes práticas educativas são fundamentais. Por meio delas, é possível refletir sobre as mudanças contextuais e suas implicações no modo de ser e viver das pessoas, problematizando e levantando questões em relação à lógica economicista mundial, alimentadores de padrões de consumo alienantes e que neutralizam os sujeitos, excluindo e marginalizando povos e nações.

Na contramão dessa lógica, está a educação como “prática libertadora”, emancipadora, formadora da cidadania críticoparticipativa.
Nesse movimento sobressai-se a importância do entendimento contextual das relações escalares local-globais e das estruturas que sustentam, num mundo dinâmico e complexo, os modos de ser e viver dos sujeitos.
Cabe destacar a contribuição de Santos: “É a partir da visão sistêmica que se encontram, interpenetram e completam as noções de mundo e de lugar, permitindo entender como cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação dependem do mundo”. Nesse contexto, situam-se as práticas de ensino e aprendizagem de Geografia, em vista da formação da consciência espacial-cidadã dos sujeitos, daqueles que leem o mundo e, nele, a realidade do cotidiano em que vivem, desvelando – por meio de uma atuação cidadã – as estruturas alienantes da sociedade. Assim, no processo de formação da consciência cidadã autônoma – diferente da alienada, sob a hegemonia do economicismo, da competitividade, do consumismo e da lógica
do cidadão sem espaço (SANTOS) – cabe acentuar que se busca, pela indagação dialética, ler a realidade em sua complexidade como prática de des-alienação, de posição crítica, de saberpensar a realidade espaço-temporal em suas múltiplas relações e determinações. Cabe, por igual, registrar que, nas aulas de Geografia, muitas vezes se lê, interpreta, estuda o espaço, os conceitos e temas programáticos – mas sem questionar condições e modos de vida, as dinâmicas que organizam e estruturam espaços do viver. Estas dinâmicas são influenciadas, sim, ideologicamente por mecanismos de produção; mas contraditoriamente também pela força de decisões sócio-individuais de superação dos condicionamentos de acomodação e passividade. Urge, portanto, ultrapassar a Geografia Tradicional, mecanicista, limitada à divisão dos lugares em escalas desconexas, sem relações e produtora, nos sujeitos-alunos, de uma consciência também desconexa e falsa,
de uma pseudoconsciência de mundo. Contribuir à formação da consciência-espacial-cidadã, de fato, é dar condições para que os escolares, em contato com os objetos da Geografia, possam viver e fazer a própria história de sujeitos em formação, com a necessária mediação docente – pois a construção de um saber-mundo e fazer mundo dá-se na dialogia, na troca compartilhada e comprometida de saberes, por professores, alunos e outros sujeitos. Como foca Freire: “Não se pode falar de conscientizar como se este fato fosse simplesmente descarregar sobre os demais o peso de um saber descomprometido, para induzir a novas formas de alienação [...]”: um saber-mundo que não leva a conhecer o mundo, explicá-lo, entendê-lo, mas a reproduzi-lo alienadamente, é um mal a ser desvelado e vencido no cotidiano das práticas escolares.
Estudar e formar um pensamento espacial, um saber-pensar o espaço (LACOSTE), é condição da historicidade humana, é condição sine qua para a vida em sociedade, para participar de seus processos, das tomadas de decisão, para fazer-se democrático e agir democraticamente, ser e estar situado nos contextos sociais. Se hoje, na chamada sociedade do conhecimento, conhecer, saber e aprender são necessidades vitais, muito mais é condição vital, nessa sociedade, a consciência do espaço e das coisas nesse espaço – saber pensar e apreender a própria realidade, como ato histórico de viver, conhecendo.
Para Lacoste, o saber-pensar o espaço está na ideia de espacialidade diferencial: [...] as práticas espaciais têm um peso sempre maior na sociedade e na vida de cada um. O desenvolvimento do processo de espacialidade diferencial acarretará, necessariamente, cedo ou tarde, a evolução, a nível coletivo, de um saber pensar o espaço, isto é, a familiarização de cada um com um instrumento conceitual que permite articular, em função de diversas práticas, as múltiplas representações espaciais que é conveniente distinguir, quaisquer que sejam sua configuração e sua escala de maneira a dispor de um instrumental de ação e reflexão (LACOSTE).
Essa consciência espacial, pois, depende de um instrumental conceitual, para formar-se nas estruturas cognitivas do sujeito em desenvolvimento. Tal instrumental constrói-se por meio de vários conjuntos espaciais, no sentido da multiplicidade de espaços em um espaço, formando conjuntos. Para Lacoste, o processo de espacialidade diferencial é essencial para que os sujeitos possam saber pensar o espaço. Frente a tal necessidade, sustenta: “Será preciso que esse saber pensar o espaço como o saber ler cartas se difunda largamente, em razão das exigências da prática social, pois que os fenômenos relacionais (a curta e a longa distância) ocupam um lugar cada vez maior”. A tese da espacialidade diferencial entrelaça-se à da consciência espacial como leitura crítica e ética do espaço, como um saber-pensar o espaço, que é também um saber-pensar a si mesmo e as consequências das próprias ações no espaço. Isso é possível, porém, no sentido de uma cabeça bem-feita, como propõe Morin; de uma cabeça que pensa local e globalmente as mudanças contextuais e suas implicações nos modos de ser e viver. Portanto, saber pensar o  espaço tem a ver com o sentido e o significado que professor e aluno atribuem ao saber-aprender Geografia, na escola. Assim, estruturar a formação de uma consciência espacial-cidadã, no sentido de saber pensar o espaço, leva à ideia de comprometimento com o mesmo, onde o sujeito é possibilidade, é devir – de si no espaço (OLIVEIRA). O comprometimento de saber pensar o espaço, como geograficidade crítico-construtiva, aparece na proposta freireana de problematização do mundo, da realidade em perspectiva de ação-reflexão-ação – proposta que não se distancia daquela de Lacoste. Assim, o processo de conscientização do e, no mundo, é intencional, é projeto de mundo conscientemente esboçado e atitudinalmente praticado:
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a que o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo (FREIRE).
Essa consciência intencionada, subjetivo-objetivamente construída, comprometida consigo e com a realidade de outrem, exige compromisso com os destinos da humanidade, com o Planeta
e todas suas formas de vida – compromisso explícito do cidadão hodierno, que intervém no lugar de vivência, na sociedade e nas decisões políticas, por sua inserção no universo das discussões, no envolvimento com os movimentos, com as lutas por melhores condições de vida, por cuidados com o lugar de pertencimento. Viver na sociedade, intervindo nela, significa romper o jogo do clientelismo político e das manobras demagógicas, compensatório assistencialistas e, assim, estabelecer novas relações de instituições e pessoas, sob a ótica de uma gestão cidadã do espaço social – gestão solidária, justa, humana e prudente, refletindo-se no modo de viver o espaço social, diferente do espaço geométrico, reduzido e abstrato. Viver o espaço social como participação política eticamente sustentada, é reconhecer-se nela como cidadã/cidadão; por isso, atitudes e ações de hetero e autocrítica, na conquista de direitos e no exercício da correspondente responsabilização pelos deveres, pelo bem coletivo nos diferentes espaços devida, diferenciam-se de atitudes e ações do infracidadão: aquele que não se reconhece em sua produção, ação, obra e vivência (DAMINANI).
Daí que é preciso ocupar os lugares da atuação cidadã – o lugar público-privado de ação política, de participação nas tomadas de decisões: por trás da desordem, da bagunça política, há uma ordem economicista, a ideologia privatista ocupando o espaço público político de participação cidadã. Há uma justificada desconfiança dos sistemas democráticos, pois, uma vez enfraquecida a democracia – participação ativa do cidadão nos contextos sociais – enfraquece-se a posição do cidadão e, com isto, o valor da própria
cidadania (SACRISTÁN).
A política democrática deve, por definição, garantir ao cidadão questionar as estruturas e condições sociais. Território, região, Estado, País e cidade, são espaços da prática de questionamento e indagação; porém, enquanto espaços política e ideologicamente estruturados, são lugares de ação e atuação de forças mobilizadoras contrárias à cidadania ativa. Como afirma Bauman, é preciso “[...] reivindicar voz permanente sobre a maneira como esse espaço é administrado”; é preciso saber ouvir e saber falar – o que remete
a uma base teórico-metodológica consistente, que contribua para que o sujeito-aluno saiba argumentar com propriedade, falar e ouvir indagando e problematizando. Saber ouvir não é silêncio passivo – mas ato de indagação propositiva.
Ouvir os outros é ouvir as diferenças, os diferentes em suas culturas, em seus grupos étnicos, em sua diversidade de modos de vida. Saber ouvir e aprender é cidadania exercida com os outros,  sem negar-lhes o direito de falar, de também se pronunciarem e construir espaços com sua forma  específica de ver, sentir e agir.  
O espaço, enquanto bem vital, é analisado e valorado não só para melhor organizá-lo, usá-lo, mas e principalmente, para se conhecer as questões geopolíticas envolvidas nas decisões tomadas e sancionadas em diferentes níveis escalares, influenciando a todos e a vida de modo geral no Planeta; haja vista que: [...] num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas de todos os outros lugares vivem, esperam ou supõem viver. [...]
O bem estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é inocente em relação à miséria de outro” (BAUMAN).
Daí, o cidadão age a partir do que conhece, do que aprendeu sobre o mundo, sobre as formas de organização espacial. É de importância estratégica, no exercício da cidadania, compreender que estrutura, forma e ação (SANTOS) organizam e dinamizam a construção do espaço geográfico – como locus das problemáticas e fenômenos que envolvem as relações sociedade-natureza, sociedade-cultura e homem-homem. Pensamento e ação democrática devem-se transformar, pela tomada de consciência do agir de um ator social, em diferentes contextos geográficos. A reforma democrática passa pela “reforma do pensamento”
(MORIN) e, transformar o pensamento, também é bem pensar o espaço, a partir da análise crítica e coerente sobre como, política e juridicamente, organiza-se o espaço. A democracia deve deixar de ser elitizada – aquela de “ator estrangeiro”, de minoria dominante.
As políticas democráticas, que agem a modo de revolução liberal, são políticas de progresso fundadas no economicismo alienante e degradante da vida e do homem; não levam o cidadão a participar do processo econômico construtor da história social, mas fazem-no cobaia de manobras com objetivos velados.
Isso precisa ser lido nas formas ou formações espaciais, uma vez que a Geografia serve para fazer a guerra (LACOSTE) – justificadamente, para continuar a luta contra as hegemonias. É preciso pensar, geograficamente, uma política de atores sociais, mediante práticas educativas sustentadas por valores humanos: não aqueles das “elites globais” ou “valores voláteis” (BAUMAN), mas valores referenciados à ética da responsabilidade, envolvendo compromisso pelos deveres consigo mesmo e com os outros na construção do direito de ser o que se aspira a ser, a partir de uma prática reflexiva e do autolimite (BAUMAN), da convivência sadia e próspera com a sociodiversidade.
Em contraposição a essa necessária reconcepção sociopedagógica e epistêmica, pesquisas e estudos entre o fim do século XX e início do XXI vêm mostrando que as orientações da Geografia escolar no Brasil têm sido pontuais; isso também aparece em documentos oficiais dos sistemas de educação em escala nacional, regional e local. Como destaca Pontuschka: “É quase consenso nos escritos oficiais ou não oficiais que a escola precisa contribuir para a construção da cidadania”. Nessa direção, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1998, p. 26), ao enfocar que a Geografia “[...] é uma área do conhecimento
comprometida em tornar o mundo compreensível para os alunos, explicável e passível de transformações”, sustentam que a conquista da cidadania brasileira é uma meta a ser alcançada também por meio do ensino dessa disciplina. Outros dois documentos, convergem a essa finalidade da Geografia escolar. A Proposta Curricular, ao focar o ensino de Geografia como “[...] responsável pelo estudo do espaço construído pelos homens em relação com a natureza” e que seu compromisso social “[...] define-se por sua responsabilidade
em estimular o pensamento crítíco/reflexivo sobre o meio em que vive o aluno”, propõe que tal ensino deva “[...] contribuir para a construção de uma sociedade cidadã”. Assim, sobre esse postulado e assumindo orientações teóricas – dos Parâmetros Curriculares Nacionais – o ensino de Geografia propõe-se a “[...] oportunizar aos alunos compreenderem de forma mais ampla a realidade, possibilitando que nela interfiram
de maneira mais consciente, sabendo conhecer e utilizar o conhecimento geográfico”. Para tanto, assim como os PCNs, sustenta: “Essa nova perspectiva considera que não basta explicar o mundo, é preciso transformá-lo. Sendo assim, a Geografia ganha conteúdos políticos que são significativos na formação do cidadão”.
Nessa linha, considerando-se as implicações curriculares acima e a importância da compreensão e leitura de mundo na escola e, nesse caso, mediante as contribuições da educação geográfica na formação de uma consciência espacial-cidadã.


Fonte: apostila digital

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